Início » AMAZÔNIA: TEOLOGIA E SOCIOLOGIA DA SUSTENTABILIDADE – PARTE I

AMAZÔNIA: TEOLOGIA E SOCIOLOGIA DA SUSTENTABILIDADE – PARTE I

by Gilmar Couto

Estevão Monteiro de Paula e Cláudio Ruy Fonseca

A população Amazônida, sem saber por certo os seus benefícios diretos e indiretos, sem métricas que possam indicar o cumprimento das suas expectativas, carecem de motivações plenas para participar ativamente em uma empreitada que possa, de fato, lhe trazer benefícios.

Esquecem de combinar com o Russos

Era um dia de 1958. Feola, grande técnico da seleção de futebol brasileira, explicava à sua seleção como vencer a mais recente e mais forte adversária do campeonato, a seleção russa. A estratégia de Feola era complicada mostrando como o time marcaria seus gols.

Na explicação Feola descrevia os passes de jogador para jogador que deviam ser feitos considerando as posições dos jogadores adversários. Quando acabou a sua explicação, o Garrincha, um dos melhores jogadores da história do futebol do Brasil, pergunta: “Tá legal, seu Feola… mas o senhor já combinou tudo isso com os russos?”

Assim, são as questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável na Amazônia. Intelectuais, formadores de opiniões e tantos outros dos mais diferentes lugares do mundo discutem essas questões sem combinar com as populações locais.

Tentativas de implementação de receitas prontas já ocorreram sem considerar-se quais são os anseios destas populações. Esquecem-se de combinar o futuro da Amazônia com os Amazônidas!

Que sem saber por certo os seus benefícios diretos e indiretos, sem métricas que possam indicar o cumprimento das suas expectativas, carecem de motivações plenas para participar ativamente em uma empreitada que possa, de fato, lhe trazer benefícios.

Racionalidade ambiental clarificada pela fé

Os fatores motivacionais do ser humano, impulsionados pela satisfação de suas necessidades, de acordo com a teoria das necessidades de Maslow (1907-1970), e depois aperfeiçoada pelo Alderfer (1973) como a teoria ERG, baseiam-se em 3 grupos motivacionais: existência, relacionamento e crescimento.

A existência, são as necessidades psicológicas e materiais; o relacionamento, trata do compartilhamento mútuo de ideias e sentimentos e; o crescimento é o desejo de ter influência criativa e produtiva.

Para isto é preciso dar musculatura aos indivíduos através do coletivo por meio do compartilhamento dos desejos baseados em princípios éticos e valores morais. Neste sentido, a religião pode ter um papel importante na promoção de autonomia social, na sobrevivência do indivíduo e na construção de subsídios para sua existência.

A racionalidade ambiental clarificada pela fé pode ser um elemento motivador para a construção de modelos econômicos de desenvolvimento sustentável, tendo como pressuposto que a fé, através da religião, pode unificar os indivíduos no fortalecimento de comunidades e no compartilhamento de trabalhos por causa de princípios éticos e valores morais universais.

O saber teológico e os processos sociais com a problemática ambiental

O lado ocidental do planeta teve, em seu processo civilizatório, forte influência dos princípios judaicos, os quais estão plasmados, de forma indelével, na formação da igreja cristã, a mesma que formatou o que entendemos ocidentalmente por moralidade. Nem poderia ser diferente, uma vez que a igreja cristã deriva necessariamente do judaísmo.

Assim, todos  os conceitos judaicos sobre moral individual e coletiva estão nos catecismos e manuais cristãos, por força da base de tudo, a qual é a Bíblia e nesta estão incluídos a Torá (os cinco primeiros livros mosaicos: Gênesis, Êxodo, levítico, Números e Deuteronômio), os profetas e os escritos, sendo esse conjunto conhecido como Velho Testamento (VT), além do Novo Testamento (NT) que inclui os evangelhos e os escritos paulinos e mais algumas cartas de Pedro, João e Judas, terminando com o Apocalipse ou revelação.

O NT trata da transição do judaísmo para a igreja cristã, mas, os conceitos do VT deram formato ao moralismo do NT.

Moralismo considera a moral como valor universal e necessário à percepção da realidade. Assim, a Torá é a fonte moral, e nesta condição, orienta o conjunto de valores compartilhados que constituem o senso coletivo do que é correto.

Para o cristianismo, o indivíduo tem responsabilidades com os direitos alheios, os quais deverão ser considerados com mais empenho do que os do próprio indivíduo. Essa percepção torna a família, as comunidades, os bairros, as cidades, muito mais seguras, em virtude da preservação dos direitos alheios.

Se a preocupação está no bem-estar do próximo, então cessam ações violentas.

As bases teológicas da civilização

O ocidente produziu um arcabouço legal baseado no princípio judaico do amor ao próximo. Em todos os marcos legais nos diversos países há preceitos e impedimentos que determinam o respeito pelo bem-estar do outro, sob pena de punições asseguradas pelos Estados.

No que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, a Torá indica que deverão ser realizadas ações que tornem evidente a materialização da justiça, esta, sendo imprescindível à diminuição das desigualdades.

Por exemplo, a cada sete dias, portanto no sábado (shabat), as fazendas deveriam permitir que os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros colhessem alimentos para seu sustento. Também era costume, durante a época da colheita de alguma lavoura, que não se fizesse a coleta dos alimentos nos cantos dos terrenos, para que os desafortunados acima descritos pudessem colher também.

Eram contornos sociais para diminuir as desigualdades. Além disso, as dívidas assumidas eram perdoadas a cada sete anos e a cada 50 anos, todas as terras vendidas voltavam ao seu dono original.

O sistema acima não veio para igreja cristã atual, embora tivesse sido praticado pela igreja cristã primitiva, aquela do primeiro século DC. O discurso de igualdade, fraternidade e liberdade é apenas retórico.

Fala-se em desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade, como sendo um processo de transformações e mudanças, em aperfeiçoamento contínuo, envolvendo múltiplas dimensões (econômica, social, ambiental), que visam diminuir as desigualdades, mas, na realidade, o acesso a bens e serviços essenciais não está disponível indiscriminadamente, daí a violência social dos nossos dias.

A ascensão do individualismo

A igreja cristã tem responsabilidade direta na manutenção das desigualdades, por consequência das interpretações dos textos e posições dos seus líderes. Na reforma empreendida por Lutero, tendo em vista desfazer o totalitarismo eclesiástico, ele teve a intenção de realocar a autoridade de uma instituição externa, para o crente individual e seu encontro direto com Deus através de leitura particular de textos sagrados e abertura pessoal para a graça divina.

Logo, os teólogos que os sucederam viram no individualismo algo que poderia ser aplicado na liberdade em relação às instituições, assumindo que ninguém pode impor aos indivíduos qualquer decisão. Nada, na cultura ou estrutura social pode aliviar a pessoa de sua responsabilidade final de decidir como viver e no que acreditar.

Tudo depende do indivíduo. Este é um ponto decisivo. Formava-se a consciência de que o eu era superior ao nós.

Descartes (1596-1650), pai da filosofia moderna, em sua tentativa de construir uma narrativa da ciência humana sobre a base de ceticismo radical, impôs o questionamento sistemático de tudo. Ele concluiu que o indivíduo era dominante: Penso, logo, existo.

 O Rabino Jonathan Sacks, em sua obra Morality argumenta, que o que tornou isto um ponto decisivo foi a herança religiosa do ocidente que tinha, como um dos seus fundamentos, o momento em que Moisés, diante da sarça ardente, perguntou o nome de Deus, e Deus replicou, Eu Sou o que Sou.

A natureza revolucionária do método cartesiano está embasada no movimento do divino “Eu sou” para o humano “Eu sou” – da visão da realidade do teocentrismo para o antropocentrismo. Esta mudança de visão teve implicações que seriam mais tarde articuladas com força despedaçadora por Friedrich Nietzsch (1844-1900).

Transvalorização

Nietzsche, é diretamente lembrado como o iminente genitor do pós-modernismo. Seus escritos permitem uma infinita gama de interpretações, mas o centro do seu trabalho foi sua percepção de que a completa visão da moralidade, como tem sido compreendida através da história do cristianismo, deveria ser substituída pelo que ele chamou de “transvalorização de valores”.

Sua visão era de que a herança moral judaico-cristã não passava de uma vingança dos sem poder contra os poderosos; a retribuição exigida pelos escravos contra os seus antigos senhores; um exercício sustentável pelo ressentimento.

Tudo o que fora reputado como virtude, compaixão, bondade, era, de fato, uma maneira de castrar a realidade, moldada e dominada pela vontade do poder. Tal interpretação é um verdadeiro vitupério à Torá.

Na competição por poder, muitas pessoas falham, mas algumas obtém sucesso e impõem sua vontade sobre outros. A tais pessoas Nietzsche chamou de um Ubermensch (super-homem).

O cristianismo se opõe à competição, uma vez que esta estimula injustiça e desigualdade.  Mas, Nietzsche não disse o que aconteceria com o resto da humanidade num mundo governado por super-homens.

Para Nietzsche, os vencedores contam, perdedores não. Um mundo governado pela vontade de poder não é um mundo moral como o reconhecemos.

A influência de Nietzsche no mundo contemporâneo é devastadora. Ele foi um dos primeiros a crer que a linguagem e as ideias eram meramente uma máscara escondendo numa subjacente batalha de vontades, uma luta pelo poder.

Assim, ele se tornou o originador, mais tarde seguido por Marx e Freud, da hermenêutica da suspeita. Não há verdades, disse ele, apenas interpretações.

Fundamentos de uma outra moral

Nietzsche destruiu, eficientemente, os fundamentos da moralidade tal como concebidos e mantidos no ocidente através dos séculos. Propôs em seu lugar uma visão profundamente subjetiva da vida moral, na qual a escolha particular era a essência.

O indivíduo tornou-se a figura marcante do drama moral, mas também seu autor, o escritor das regras.

Isto foi incluído, de muitas formas, em diferentes culturas.

Na França tornou-se o existencialismo, como explicado por Sartre e Camus. Nós estamos aqui para ser nós mesmos, não atores dirigidos pela consciência coletiva.

Mais tarde, isto se tornou o movimento conhecido como pós-modernismo, liderado por Foucault, Derrida e outros.

Moralidade assim cessou de ser o que tinha usualmente sido percebido como um bem, ou seja, o compartilhado código pelo qual se regulam os membros de um grupo, para tornar-se uma mera questão de gosto pessoal.

O resultado foi uma ética sem princípios acordados ou verdades objetivas. O mundo do relativismo, subjetivismo, e uma nova ideia dominante, chamada autenticidade, ou como é, às vezes chamada, individualismo expressivo.

A moral imperativa, diferente em substância para cada um de nós, é o que chamam de tornarmo-nos nós mesmos.

Moral individualista e os limites da democracia

O atual conceito de moralidade torna-se um perigo às democracias, pois, as pessoas simplesmente deixaram de se interessar pelo bem-estar dos outros, transferindo essa responsabilidade para o Estado, que cresce, cada vez mais, até se tornar uma espécie de tirania benigna.

Decisões coletivas são terceirizadas para o Estado, dando ensejo ao surgimento de regimes de exceção.

Vivendo à parte, as pessoas se tornam como estranhas em relação ao destino de todos os outros. A humanidade fica restrita aos seus filhos e seus amigos particulares.

Quanto ao resto dos seus concidadãos, estão perto, mas não os veem. Podem tocá-los, mas não os sentem, porque só existem para si mesmas.

Neste caso é como se o país estivesse dissolvido, não havendo o sentido da comunidade nacional, do patriotismo, da luta pelo ideal compartilhado. Esse é o meio ambiente para o surgimento de tiranias.

O perigo da terceirização é que ao se deixar o que não nos concerne pessoalmente para responsabilidade do Estado, assumimos o risco do sequestro da liberdade democrática.

A única coisa que nos protege deste resultado é o fortalecimento das famílias, comunidades, igrejas e organizações de caridade. Em outras palavras, no ambiente moral compartilhado as pessoas ativamente cuidam umas das outras.

Perder os ambientes do encontro face a face, onde o senso moral é exercitado levará à perda da liberdade.

O ocidente construiu um pano de fundo social que frustra iniciativas que obrigam cooperação. Por esse motivo, qualquer planejamento para alcançar níveis superiores de sustentabilidade tende a não se concretizar.

Sustentabilidade requer ação conjunta social, política, educacional, religiosa, entre outras. Na medida em que a sociedade pós-moderna aprimora o individualismo, não há como pensar em cooperacionismo.

Essa impossibilidade se dá nos níveis internacionais, mas, também no nível nacional, estadual, municipal, etc. (assistimos hoje a descoordenação dos países, dos estados no caso brasileiro, no enfrentamento a COVID – 19).

You may also like

Leave a Comment

Fale pelo WhatsApp

Envie um E-mail

© 2022. Portal Olá! Salve Salve!